Santa Catarina é um território que carrega histórias de resistência, ancestralidade e preservação cultural muito além das narrativas eurocêntricas que comumente ocupam o imaginário sobre o estado. Entre montanhas, vales, litoral e áreas rurais, existem comunidades que mantêm vivas tradições que atravessaram séculos.
Visitar e conhecer as comunidades quilombolas reconhecidas em Santa Catarina e seus saberes ancestrais é uma experiência que conecta o visitante com a história viva de luta, resistência e manutenção de práticas culturais originadas na diáspora africana.
Essas comunidades não apenas preservam seus modos de vida, como também compartilham conhecimentos sobre agricultura, culinária, medicina tradicional, espiritualidade e relações comunitárias, sendo verdadeiros patrimônios imateriais do estado.
A formação dos quilombos em Santa Catarina
Origens da resistência
Os quilombos surgiram como territórios de resistência formados por pessoas negras escravizadas que fugiam das fazendas, engenhos e centros urbanos em busca de liberdade. Em Santa Catarina, esses agrupamentos começaram a se formar ainda no século XVIII, sobretudo em áreas de mata fechada, morros e regiões de difícil acesso.
Territórios de proteção e cultura
Mais do que refúgios, os quilombos se tornaram espaços de construção de novas sociedades. Nessas comunidades, foram mantidas práticas culturais herdadas dos povos africanos, além de desenvolvidas soluções para viver em harmonia com o meio ambiente, longe dos centros de opressão colonial.
Processo de reconhecimento legal
O reconhecimento oficial das comunidades quilombolas em Santa Catarina e seus saberes ancestrais é resultado de lutas históricas, que culminaram na promulgação do artigo 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias da Constituição Federal de 1988, que garante o direito à terra às comunidades remanescentes de quilombos.
Quantas e quais são as comunidades quilombolas em Santa Catarina
Panorama atual
Atualmente, Santa Catarina possui sete comunidades quilombolas oficialmente reconhecidas pela Fundação Palmares e outros órgãos federais e estaduais. No entanto, existem outros agrupamentos que estão em processo de autodeclaração ou aguardando regularização fundiária.
Comunidades oficialmente reconhecidas
- Comunidade Quilombola Toca, em Paulo Lopes
- Comunidade Quilombola Morro do Fortunato, em Garopaba
- Comunidade Quilombola Aldeia, em Garopaba
- Comunidade Quilombola Santa Cruz, em Ivoti (Imbituba)
- Comunidade Quilombola Morro do Boi, em Balneário Camboriú
- Comunidade Quilombola Vidal Martins, em Florianópolis
- Comunidade Quilombola Invernada dos Negros, em Campos Novos, Abdon Batista e Bom Retiro
Cada uma dessas comunidades carrega práticas culturais, saberes ancestrais e modos de vida que dialogam profundamente com suas histórias de resistência e pertencimento.
Invernada dos Negros: o maior quilombo do estado
História e trajetória
Localizada entre os municípios de Campos Novos, Abdon Batista e Bom Retiro, a Invernada dos Negros é considerada a maior comunidade quilombola de Santa Catarina. Sua origem remonta ao século XIX, quando descendentes de pessoas escravizadas receberam terras como pagamento pela participação na Guerra do Paraguai.
Saberes transmitidos por gerações
- Agricultura de subsistência: Cultivo de milho, feijão, mandioca e hortaliças de forma agroecológica.
- Culinária tradicional: Pratos como quirera, feijoada, biju de mandioca e pão de milho.
- Artesanato e técnicas ancestrais: Produção de cestos, trançados e utensílios a partir de fibras naturais e cipós.
- Festas e manifestações culturais: Danças, rodas de conversa, cantorias, celebrações religiosas e práticas espirituais afro-brasileiras.
Desafios e conquistas
A comunidade luta pela titulação definitiva de suas terras, além de enfrentar desafios relacionados ao acesso à saúde, educação e preservação cultural. Ao mesmo tempo, promove ações de fortalecimento de sua identidade, como oficinas culturais, festivais e programas de turismo comunitário.
Quilombo Vidal Martins: resistência na capital
Um quilombo dentro de Florianópolis
Localizado no bairro Rio Vermelho, em Florianópolis, o Quilombo Vidal Martins preserva uma história que remonta aos séculos XVIII e XIX, período em que pessoas negras fugitivas se instalaram nas regiões mais afastadas da ilha.
Práticas culturais preservadas
- Saberes agrícolas: Manejo de hortas, ervas medicinais e técnicas de pesca artesanal.
- Culinária: Preparo de pratos como moquecas, feijão tropeiro, peixe na folha de bananeira e doces de frutos nativos.
- Saber medicinal: Uso de plantas para chás, banhos e tratamentos tradicionais.
- Celebrações: Festas como a do Divino Espírito Santo, batuques e rodas de samba.
Relação com a cidade
Apesar de estar inserido na zona urbana, o quilombo mantém práticas comunitárias e resistências frente à especulação imobiliária, sendo um dos exemplos de como a cultura quilombola se adapta e sobrevive em meio às transformações urbanas.
Quilombos de Garopaba: tradição no litoral
Morro do Fortunato e Aldeia
As comunidades quilombolas Morro do Fortunato e Aldeia, ambas no município de Garopaba, são reconhecidas por sua relação profunda com o território costeiro e pelas práticas que aliam cultura, tradição e preservação ambiental.
Saberes tradicionais costeiros
- Pesca artesanal: Utilização de canoas, redes e armadilhas de origem africana adaptadas ao ambiente catarinense.
- Construção de embarcações: Técnicas passadas de geração em geração para construção de botes e canoas.
- Culinária afro-litorânea: Pratos à base de frutos do mar combinados com influências africanas e indígenas.
Preservação ambiental e cultural
Essas comunidades estão inseridas em áreas de proteção ambiental e atuam como guardiãs do território, protegendo manguezais, restingas e costões, enquanto mantêm vivos seus saberes ancestrais.
Quilombo Toca e Quilombo Santa Cruz: memórias de Paulo Lopes e Imbituba
História de resistência
Os quilombos Toca, em Paulo Lopes, e Santa Cruz, em Imbituba, são testemunhos vivos da resistência negra no litoral sul de Santa Catarina. Suas histórias estão diretamente ligadas ao ciclo do tropeirismo e ao trabalho em fazendas da região.
Saberes mantidos pela coletividade
- Agricultura familiar: Sistemas agroflorestais, cultivo de banana, mandioca, milho e feijão.
- Uso de plantas medicinais: Transmissão oral de conhecimentos fitoterápicos aplicados tanto na cura física quanto no cuidado espiritual.
- Cultura oral: Contação de histórias, lendas e cânticos que fortalecem a identidade comunitária.
Turismo de base comunitária
As comunidades desenvolvem atividades que permitem ao visitante conhecer sua história, gastronomia e práticas culturais, promovendo uma troca rica e transformadora tanto para quem recebe quanto para quem visita.
Quilombo Morro do Boi: resistência em meio à urbanização
Território ameaçado
Situado em Balneário Camboriú, o Quilombo Morro do Boi enfrenta desafios severos devido à intensa urbanização e à especulação imobiliária, sendo um dos exemplos mais fortes de resistência em áreas urbanas no estado.
Saberes preservados
- Culinária afro-catarinense: Preparo de pratos como farofa de banana, peixe assado, feijão com carne seca e doces tradicionais.
- Rituais e espiritualidade: Práticas ligadas ao candomblé, umbanda e outras tradições afro-brasileiras.
- Resgate da história: Ações para manter viva a memória dos antepassados e das lutas que permitiram a permanência da comunidade no território.
Saberes ancestrais que atravessam gerações
Sistemas agrícolas sustentáveis
As comunidades quilombolas reconhecidas em Santa Catarina e seus saberes ancestrais dominam técnicas agrícolas que dialogam com os princípios da agroecologia, garantindo a preservação do solo, da biodiversidade e da água.
Medicina tradicional
O uso de ervas, raízes, folhas e rituais é parte essencial dos sistemas de saúde tradicionais quilombolas, que combinam conhecimentos africanos, indígenas e adaptados ao bioma local.
Espiritualidade e cultura
A conexão com os ancestrais, os rituais, as celebrações, a música, a dança e a oralidade são elementos centrais que estruturam a vida nas comunidades, fortalecendo a identidade coletiva e a resistência frente às pressões externas.
Desafios enfrentados pelas comunidades
Ameaças constantes
- Especulação imobiliária: Pressões sobre os territórios, especialmente nas áreas urbanas e litorâneas.
- Burocracia fundiária: Lentidão nos processos de titulação e regularização das terras.
- Discriminação e racismo estrutural: Barreiras sociais que impactam o acesso a direitos básicos como saúde, educação e moradia digna.
Resistência e mobilização
As comunidades quilombolas de Santa Catarina continuam mobilizadas, buscando fortalecer sua autonomia, sua cultura e seu direito ao território, por meio de associações, conselhos e redes de apoio.
Um patrimônio vivo de cultura, resistência e sabedoria
Conhecer as comunidades quilombolas reconhecidas em Santa Catarina e seus saberes ancestrais é muito mais do que uma viagem por territórios físicos. É um encontro profundo com histórias de resistência, cuidado com a terra, conexão espiritual e transmissão de conhecimentos que sustentam não só essas comunidades, mas também a diversidade cultural e ambiental do estado.
Esses territórios não são apenas pontos no mapa. São guardiões de um legado imensurável, onde a força, a beleza e a sabedoria dos ancestrais continuam a pulsar, resistindo, florescendo e inspirando as gerações que estão por vir.